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Escrito por Tó Saraiva
Desde criança em Angola que ouço um infinito estilo de músicas, desde regionais como as do Zé Viola, passando por África com Tabu Ley Rochereau e tantos outros, a Europa que foi um dos maiores influenciadores com as musicas portuguesas, francesas, italianas, inglesas e outros países. O que me enchia mesmo eram as músicas dos países da América, norte, centro, sul e ilhas do Caribe.
Em Angola, no processo de preparação para a declaração da independência outros sons africanos surgiram e com eles uma maior identificação com a musica africana nomeadamente zairense, camaronesa e nigeriana, destes dois últimos países tínhamos musicas com mais de cinco minutos e chegavam a cerca de meia hora. Que músicas tão longas. Para dançar começávamos geralmente em par com grandes passadas mas a sua longa duração fazia-nos dançar soltos em roda ou em par e por vezes se desistia. Óh que tempos, muita brincadeira, muita irmandade e sobretudo muito respeito para com nossas amigas e companheiras deste gostoso desfrute. Tempos que se foram!
O africano e em particular o angolano gosta de uma boa dança, esta paixão é extensiva às crianças. Conseguimos dançar em qualquer lugar e de qualquer forma, abanando a cabeça, batendo o pé e até mesmo ensaiando um passo, sozinhos ou acompanhados. Quando este momento chega dá mesmo dançar homem com homem ou mulher com mulher, o importante mesmo é dar aquele ensaio de passada gostosa para curtir o som, muitas vezes imaginário, cantarolado.
No meio deste nosso habitué de danca apareceu um som cativante que era uma mistura de sons africanos com caribenhos. Qual rumba ou qual bolero, este era um som de alegria onde saltavamos, ou escreviamos nos salões.
Na sequência da aceitação deste género musical é organizada a vinda, do que viria a ser um dos maiores expoente deste estilo de música, os KASSAV, para uma tournée por angola. Uma oportunidade para animar o povo, afinal o pais estava em guerra. O mercado inunda-se de música Zouk e a nossa música e de outros países evoluíram para este estilo contagioso e se tornou uma febre mundial até aos dias de hoje.
Decorria o início da década de oitenta quando tive o primeiro contacto com esta música. Foi um momento particular, amor à primeira vista. Estava nos meus 30 anos quando fui a uma festa, convidado mas também poderia ter ido a pato se tivesse conhecimento e não fosse convidado, afinal era uma casa conhecida, ali para as bandas da Vila Alice. Tinha de ir depois de saber que iria encontrar alguém que mexia comigo.
Uma casa de família tradicional urbana, com muitas plantas e, bem tratadas diga-se em abono da verdade, até resistia um carramachão de buganvilhas de duas cores, branca e turquesa. Naquela altura ainda havia dificuldades de abastecimento de água, tal como hoje.
Ambiente sempre agradável, singelo apesar do ambiente de festa. Com a minha chegada ouvi o Lito, anfitrião, a falar com alguns amigos sobre plantas. Não sei como começou mas decorria uma lembrança dos pais a tratarem das plantas no tempo seco e os filhos ajudavam. Era um processo de educação e estímulo de ligação com as plantas, de saber valorizar e apreciar o valor da sua estética no conjunto da casa e da necessidade de as ter sempre bem tratadas.
Era uma noite de cacimbo (tempo seco) agradável e atípica. O céu estava claro, muito poucas vezes acontecia uma noite assim, era contra todas as previsões meteorológicas uma vez que geralmente as noites eram nebulosas, e uma lua longínqua. A noite parecia feita para ocasião. Que noite maravilhosa dizia eu para comigo, parece que tudo se está a favor, falta encontrar o anjo da noite.
No deambular pelos diversos grupos que se formam em festas encontrei quem de facto esperava. Aquele abraço gostoso de conforto pelo encontro o beijo nas faces, afinal ninguém falhou, a noite está segura.
A Bela era uma mulher linda no seu conjunto. Nesta noite ela estava de vestido lindo até ao joelho, tipo Channel, de diversas cores suaves onde as predominantes eram o amarelo e o branco. Parecia uma collegial, fiz o elogio, agarrei-lhe na mão e rodei-a para ter a visão panorâmica do conjunto. De facto, o vestido foi escolhido a preceito, demarcavam os seios, que eram pequenos, cabiam folgadamente na minha mão em concha, os corpo escultural, como dizia um amigo meu médico, boa bacia, a preferência nacional estava no ponto, de pretoberância delicada, a perna tinha uns gémeos perfeitos o pé perfeiro, notava-se a cova e via-se o início dos dedos, que hoje particularmente sobresaiam devido ao sapato raso preto em bico, que se encaixavam na perfeição ao conjunto.
Ouvi, como um chamado de atenção, sou eu mesma, as roupas do dia a dia têm de ser mais práticas e de protecção contra olhares maliciosos. Mais um abraço que provava a ligação existentes entre os dois, hoje era do dia da alegria.
Levantei os olhos e deparei-me com um anjo, avaliei só detalhes da maquilhagem, um toque leve de lápis nas sobrancelhas, sem base no rosto e um baton neutron que faziam sobressair os lábios. Perfeita, ouvi-me a dizer, estes lábios estão sensuais demais, não sei quanto tempo vou aguentar sem te beijar, gargalhadas, por outro lado algo me dizia para a deixar daquela forma na festa, o resto seria para depois. Havia um detalhe singelo mas de uso permanente que, naquela noite, se destacava em particular. O fio de ouro fechava o detalhe particularmente elegante naquela noite.
A perfeição estava diante de mim com aquele tom ocre da pele luzídio, uma crioula, sentenciava. Os lábios moderadamente carnudos. Ela sabia que a estava radiografando e ficando sem fôlego, hoje ela estava diferente, veio com todo o seu potencial expostos, como quem diz, ou hoje, ou hoje. A noite estava propícia para ser marcante, ficamos juntos a noite toda dançando. Dava gosto dançar, era leve, elegante e parecia conhecer todos os passos.
A surpresa foi anunciada pelo anfitrião numa altura em que a festa estava animada, mais ou menos desta forma, trouxe um estilo de música do Caribe e espero que gostem, vamos dançar até onde der. De um dos cantos surge uma voz, se é para dar passada é melhor deitar fora a chave. Estamos aqui para brincar e ter um bom convício como tem sido sempre nesta casa. Obrigado, acreditamos no teu bom gosto, afinal nunca nos decepcionaste.
O som inicia há um “suspense”, preparem-se e vejam aquela companheira que se cruza bem na passada com cada um. Reinicia a música e o pequeno recinto do quintal fica cheio, muitos comentários de alegria pelos acordes que iam evoluindo. Aquela mistura de música caribenha e africana toma conta da noite.
A primeira música era um misto de rumba com merengue, os dançarinos tão depressa estavam juntos como como separados e assim foi passando a noite, bem animada.
Uma noite diferente de dança, as músicas se repetiam e ninguém reivindicava, tal a identidade do som com cada um dos presentes. Muita dança, muita conversa, muitos elogios ao tipo de música, alguns a comparavam ao Kizomba, encontravam muitas semelhanças, outros que era uma miscelânia dos sons latinos.
De facto a música encantou. Os sons da noite foram múltiplos e os Kassav como se verificou alguns anos depois vieram a Angola para concerto. Para mim foi uma noite inesquecível com o meu par, não só pela música sobretudo pelo que estava em jogo, a companheira da noite. O ambiente de quintal também ajudou muito devido à proximidade das pessoas.
Particularmente, adorava os ambientes de quintal, havia melhor controlo dos indisciplinados porque éramos todos conhecidos e quando se chamasse atenção a um desavindo havia obediência, afinal ninguém queria mal a ninguém éramos todos amigos ou próximos. Estava em jogo o nome das famílias dos envolvidos tanto do lado repreendedor como do prevaricador. Amizade também era sinónimo de proteção. Ninguém era posto fora. Eram valores passados pelas famílias e o verdadeiro significado de amizade. Felizmente ainda havia uma parte da sociedade que conservava esses valores.